Recordo-me da paz na roça.
Acordava sempre às 4 horas da matina. Neste tempo, existia o programa de rádio do
Zé Bettio. Bem cedo sentia o cheiro do café, ouvia meus pais conversando antes
da lida, lá na cozinha. Falavam do cotidiano, coisas do dia, do trabalho, da
vaca ou do peão.
Logo minha mãe me chamava para
levantar. Tomava leite quente, às vezes com
Toddy,
na maioria das vezes com açúcar e farinha feita em casa. Às vezes, tínhamos
queijo derretido na chapa; às vezes, bolinho de milho e às vezes, só o leite
mesmo.
Levantávamos cedo demais e eu me
escondia na sacaria de arroz que ficava armazenada em um dos quartos. Lá,
escondidos, estavam meus gibis – eu lia as figuras. Mas alguém me ensinou a
soletrar, daí em diante avancei bem e conheci o Mickey e o Pato Donald (Para mim, Michei e Donaldi - era como eu pronunciava). Eu era
ousada – até lia para minha irmã mais nova.
Depois, a gente tinha que varrer
o quintal, limpar a casa, ajudar a lavar a louça no jirau. Daí, era hora de
brincar. Tinha um cachorro – o Pretim –, ele corria atrás de nós e subíamos na
rede enquanto ele ficava embaixo, passando para lá e para cá, a nos fazer
cócegas. Quando parava, provocávamos novamente e ele recomeçava. O Pretim,
literalmente, caiu do caminhão de mudança e nunca mais o vimos. Que tristeza!
Deve ter sido a minha primeira separação. Depois disso, foi a minha boneca de
pano marrom.
Sim, eu tive uma boneca de
pano. Foi feita por minha mãe com um
tecido marrom de uma calça velha de meu pai. Os olhos eram de botões. A boca,
uma aplicação de tecido vermelho. Ela tinha cabelos de linha. Mas o recheio
dela, pensa, era farelo (ração para porcos). Dá para imaginar o que aconteceu: eu
a esqueci no quintal, sei lá onde, não
me lembro, e ela foi devorada. Esta foi
uma segunda perda, irreparável. Nunca mais existiu outra boneca igual.
Com uns seis anos mudamos para
cidade. Eu precisava ir para escola. A tia Ilma, minha professora da escola
rural, era bem legal e me colocava no colo para ensinar as letras – eu era o “bebê”
da sala. As crianças de roça vão bem mais tarde para o colégio e eu fui com quatro
anos. Na cidade, eu sofri bowling.
Era branca demais! Os meus cabelos, muito lisos e muito penteados. Além disso,
minhas colegas não aceitavam que eu me penteasse sozinha. Achavam que eu
mentia, pois elas eram penteadas pelas mães.
A história do sorvete não pode
ficar de fora. É hilária. Uma menina, que aqui vou chamar de Marta Farfalina,
estava a saborear o tal picolé de creme – meu sonho de consumo. Eu levava pão
com margarina e Q-suco. Comprávamos na venda do seu Olavo. Meu pai, agricultor,
só tinha dinheiro uma vez por ano, então eu não tinha dinheiro para o lanche.
Ela lambia este picolé e o troço escorria pelo braço. A roceira aqui disse: dá
um pouquinho? Ela respondeu de maneira egoísta e mimada: vai comprar um pra
você. Para mim, que costumava dividir tudo, aquilo foi um horror. Até a boneca
que ganhávamos no natal era para as duas, e depois para as três.
Mas deixe estar. Anos depois,
passei por Marta. Ela estava muito diferente, descabelada e com uns 100 quilos.
Eu já estudava na capital, já sabia dirigir, em um carro da moda, do meu pai,
claro! Dei uma buzinadinha para ela... Como é doce o sabor da vingança! Não posso negar que esta talvez seja minha
terceira perda – a inocência. Eu havia guardado ressentimento.
Tenho vontade mesmo de voltar a
ouvir o Zé Bettio, e sentir cheiro de café quando o galo cantava anunciando a
barra do dia. Meu pai indo pra roça, minha mãe nos entregando o copo de leite
quente com farinha. O quintal para varrer, o Pretim latindo e correndo atrás da
gente, a rede, os gibis atrás dos sacos de arroz com palha. O resto fica para
outro dia, outra hora, enquanto vamos vivendo.